O Brasil na contramão? Verticalização portuária e a experiência estrangeira.
O tema verticalização portuária tem provocado acirrada discussão na logística brasileira, apesar dos esforços da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários, da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), na realização de estudos e audiências públicas sobre esse fenômeno.
Isso se dá porque, diante da possibilidade de participação de armador (shipping lines) nos editais de licitação de áreas e infraestrutura pública para a movimentação e armazenagem de cargas conteinerizadas e carga geral, localizadas no Complexo Portuário de Santos (STS10) e do Porto Organizado de Itajaí, entidades que representam prestadores de serviços, mas não usuários, especialmente recintos das zonas secundária (Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados – Abtra), que não sofrem regulação da ANTAQ com relação ao dever de prestar serviço adequado ao usuário, e primária (Associação Brasileira dos Terminais Portuários – ABTP), representando empresas não verticalizadas, vêm se manifestando a favor da proibição da participação de armadores nos leilões, sob o argumento de risco de abuso de posição dominante, ainda que não comprovem.
A pergunta é: tal postura vai na contramão do que é feito em nível global, quando cerca de 300 terminais em todos os continentes já são operados por armadores, inclusive em países que possuem frota mercante própria, como Alemanha, França e China? Lembro que o Brasil não possui empresa de navegação de bandeira brasileira com navio de porta-contêiner no longo curso, o que aumenta a dependência por empresas de rotas regulares.
Qual é o real impacto desse “fechamento dos portos às nações amigas” duzentos e catorze anos depois do decreto de Abertura dos Portos por Dom João, possivelmente o primeiro ato de intervenção do Estado na economia?
Cabe lembrar que esse ato foi um passo importante para o processo de independência do Brasil, pois enfraqueceu o domínio português sobre a economia brasileira, ao quebrar o monopólio de Portugal, promovendo a diversificação de produtos aqui comercializados.
Nesse cenário, é relevante a experiência estrangeira sobre o tema, com evidências empíricas que possam contribuir para o debate, embora a Secretaria Nacional de Portos e a ANTAQ já tenham permitido a participação de armador de contêineres no leilão do STS10, de forma individualizada, com algumas condições.
No contexto global, em quase trezentos terminais portuários, os maiores armadores de contêineres do mundo, que já operam rotas de transporte de contêineres e terminais no Brasil, vêm tratando os terminais marítimos como parte integrante da sua cadeia logística e investindo nesse mercado. Em muitos casos, os operadores portuários e os governos locais vêm cooperando e atraindo tais agentes, inclusive com o auxílio de financiamento.
Um modelo operacional adotado é a propriedade pública com operadores privados, como já ocorre no Brasil. Embora varie o tipo de envolvimento em cada caso, as empresas de navegação formam joint-ventures com diferentes investidores, como empresários locais, operadores públicos e outros operadores portuários internacionais, como a Fase 4 do porto de Shanghai, que é operada pela APM Terminals (Maersk), e o Shanghai International Port Group (SIPG), um operador apoiado pelo governo local.
A joint-venture Nansha Port que opera no porto de Guangzhou é formada pela APMT, Cosco Shipping Ports e algumas empresas do governo local.
Somente poucos armadores declaram que a operação no seu terminal é exclusiva para os seus navios, como os terminais da OOCL, em Long Beach, EUA, onde pude operar como oficial de náutica da Docenave nos anos 80, e Kaohsiung, na China. Ao contrário, MSC e Maersk disponibilizam os seus terminais para a operações de outros armadores, o que tem contribuído para ampliar a oferta de serviços ao usuário final. Trata-se de um fenômeno mundial.
A experiência estrangeira
A fim de contribuir para o debate nacional, como entusiasta do direito comparado há mais de trinta anos na vida acadêmica, é importante trazer a experiência estrangeira, afinal, é preciso saber se a postura das entidades acima vai na contramão do que é feito globalmente, especialmente quando há evidências empíricas.
Dessa forma, será feito um resumo da tese de doutorado do Institut of Transport and Logistics da University of Sidney, com o título Vertical Integration in the Maritime Industry: Container and Shipping Lines Investment in Ports and Terminals, 2020, 163 p., do PhD Shengda Zhu, que é professor honorário associado do referido instituto.
O seu objetivo é estudar (i) os impactos da integração vertical entre armadores de linhas de contêiner e terminal de contêiner com um modelo analítico e (ii) investigar os efeitos da integração vertical sobre o tamanho do terminal de contêiner e da eficiência.
A pesquisa mostra que, em 2018, os oito maiores armadores de contêineres do mundo: Maersk (78 terminais); MSC (54); Cosco/OOCL (38); CMA-CGM (45); Hapag-Lloyd (NA); One (35); Evergreen (8); e Yang Ming (6), totalizavam 264 terminais.
A Maersk (APMT), por exemplo, opera nas Américas, Ásia, Europa, África e Oriente Médio, enquanto a MSC, através da TIL, com investimento em 54 terminais em 26 países, opera 37 deles, sendo considerado o armador que possui a maior diversidade geográfica.
A escolha da tese acima se justifica pelo ineditismo, amplitude e relevância da pesquisa empírica realizada junto aos 100 maiores terminais dentre os que estão acima, durante dois anos. Nesse grupo de uma centena, 63 deles são integrados por armadores.
Conclusão
Concorrência e desenvolvimento regional exigem acesso de qualidade a todos os usuários, por outro lado, é natural que, na defesa dos seus interesses, armadores e terminais proporcionem serviço de excelência aos seus clientes. No Brasil, pesquisa recente da ANTAQ sobre os impactos da Covid-19 no setor portuário comprovou que houve menos omissão de escalas em terminais verticalizados, que possuem maior capacidade e eficiência operacional, uma externalidade positiva à operação do usuário.
Por sua vez, a integração navio-porto pode ter implicações complexas para os governos e a indústria marítima, todavia, não é recomendável para governos e autoridades portuárias introduzirem regulação rígida sobre o investimento sem que um completo conhecimento das práticas de mercado seja adquirido. É o que se espera com o modelo adotado no edital do STS10.
Nesse caso, ambos investimentos verticalizados e concorrência podem ser assegurados, de forma que estimular a concorrência via verticalização pode ser a melhor estratégia para a indústria marítima e para o usuário.
A tese concluiu que, após a comparação entre os dois modelos (com e sem integração vertical), quanto maior a participação da empresa de navegação no terminal, maior a eficiência do terminal. Por sua vez, quando o terminal tem investimento de uma empresa de navegação, ele tende a uma expansão de capacidade mais agressiva do que o terminal não verticalizado.
Ademais, a pesquisa comprovou-se que a integração vertical é tema complexo, de modo que as autoridades regulatórias devem buscar um ambiente de concorrência para todas as linhas de navegação, não havendo qualquer menção a terminal portuário ou zona secundária.
A possibilidade de participação de armador nos editais, em igualdade de condições com os terminais não verticalizados, e eventual integração com empresas de navegação significam a garantia de movimentação portuária, que é fundamental. A tese demonstrou que os terminais integrados verticalmente tendem a entregar uma produção mais alta ao mercado portuário.
Reflexões sobre o caso brasileiro
Nesse cenário, do ponto de vista do interesse público e de efetividade do serviço adequado ao usuário, razão de existência dos diversos prestadores de serviços, especialmente a oferta de serviços portuários e de transporte marítimo de cabotagem e longo curso, com maiores opções e escala para o usuário, tendo em vista a zona primária ser mercado regulado pela ANTAQ, que abrange portos organizados, arrendatários e instalações portuárias, nos quais se incluem os TUPs (terminais de uso privado), cabe a pergunta: a verticalização pode ser benéfica ao interesse nacional?
Ainda, a restrição à participação do armador de contêiner nos leilões, em conjunto ou isoladamente, contribui para o serviço adequado do usuário, considerando as condições de eficiência, segurança, previsibilidade, regularidade, modicidade e pontualidade?
A resposta requer análise técnica complexa, diante dos aspectos econômicos de abuso da posição dominante que, segundo tais prestadores de serviços, poderá ocorrer caso a Secretaria Nacional Portos autorize a participação de armadores de contêineres em tais certames.
Mais do que um modelo específico, a economia engloba um conjunto de modelos. A disciplina avança mediante a expansão de seu catálogo de modelo e a melhoria da conexão entre esses modelos e o mundo real.
A diversidade de modelos econômicos é a necessária contrapartida à flexibilidade do mundo social, pois entornos sociais diferentes demandam modelos distintos, especialmente diante das características dos mercados relevantes, como os de Santa Catarina e São Paulo. Assim, é muito pouco que reguladores e economistas descubram um modelo universal aplicável a todos.
O problema é que, segundo o professor de Economia Política Internacional, da Kennedy School of Government, da Harvard University, especializado em teoria da complexidade econômica, dr. Dani Rodrik (Economic Rules – The rights and wrongs of the Dismal Science), os economistas possuem uma tendência a abusar dos seus modelos, em parte devido ao exemplo que tomam das ciências naturais, de modo que são propensos a confundir um modelo com o modelo, relevante e aplicável a qualquer mercado. No caso da verticalização portuária, não há evidência empírica que comprove que tal fenômeno é prejudicial ao usuário.
Por fim, parece acertada a possibilidade de participação de armador que consta no edital do Minfra (Ministério da Infraestrutura), da seguinte forma, dentre outras condicionantes no contrato para o arrendamento de área e infraestrutura pública para a movimentação e armazenagem de cargas conteinerizadas e carga geral, localizadas dentro do Complexo Portuário de Santos, denominada STS10, conforme a cláusula a seguir:
7.1.2.3.2 Sem prejuízo das medidas fiscalizatórias e sancionatórias previstas nas leis e normas, havendo indícios ou fundado receio de materialização de riscos e efeitos potenciais derivados de condutas anticompetitivas, discriminatórias ou abusivas da instalação portuária em conjunto com o seu controlador integrado, a ANTAQ poderá adotar, por prazo certo, medidas mitigatórias, níveis de serviço ou limites comportamentais adicionais que visem combater e inibir práticas anticompetitivas, respeitando, para tanto, o contraditório e garantida a apresentação de justificativas quanto a razoabilidade da atividade.
Essa regra deve preponderar, independente de o prestador de serviço ser ou não verticalizado com a linha de navegação. Talvez, diante das conclusões do estudo, seja até o caso de aplicá-la com maior afinco aos terminais ditos “bandeira branca”, que possuem menores incentivos à eficiência e ampliação de capacidade do que seus congêneres verticalizados.
Diante de tais argumentos, especialmente as evidências empíricas da experiência estrangeira em nível global, parece-nos acertada a não criação de barreiras de entrada pelo Estado (ANTAQ e Cade) e governo federal, e a opção por uma regulação ex post, conforme a cláusula acima, dentre outras que fazem parte da minuta do contrato e do edital. A opção por não ir na contramão do que é feito nos demais países é cristalina e bem-vinda.
Texto desenvolvido e publicado originalmente em Portal da Infra.