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“Não olhe para cima”: breve notas sobre o Relatório de Transporte Marítimo 2021 da UNCTAD

Texto publicado originalmente em: Aduaneiras – Informação sem fronteiras – há mais de 50 anos levando conhecimento sobre Comércio Exterior.

Autor: Osvaldo Agripino de Castro Junior

O que o recente filme “Não olhe para cima”, que faz uma crítica à postura da maior parte da população dos Estados Unidos, governo e meios de imprensa, em relação à ciência, tem a ver com o Relatório sobre Transporte Marítimo 2021 da UNCTAD?

O citado documento menciona, dentre vários exemplos, que o aumento do frete alcançou mais de 900% na rota China-Brasil em um ano. Isso é permitido pela legislação brasileira? Temos normas suficientes para combater ou reduzir o impacto dessa externalidade negativa na logística marítima? O que é possível fazer?

Em 2020, com o início da pandemia do coronavírus, algumas medidas de bloqueio entre as fronteiras foram colocadas em prática, afetando repentinamente a demanda por contêineres no mundo todo. Com o volume de contêineres escasso e portos congestionados, importadores passaram a vivenciar uma rotina de cobrança de frete marítimo e de sobre-estadia (demurrage/detention) cada vez mais altas, inclusive com redução do free time.

A análise está no The Review of Maritime Transport 2021, uma publicação periódica preparada pelo secretariado da UNCTAD desde 1968 com o objetivo de promover a transparência dos mercados marítimos e analisar o desenvolvimento no setor. A United Nations Conference on Trade and Development (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento) é uma organização intergovernamental ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) que busca apoiar países em desenvolvimento para uma melhor integração na economia global.

Segundo a publicação, a demanda é forte, mas há ainda a incerteza crescente na oferta lado a lado, com preocupações sobre a eficiência dos sistemas de transporte, logística e operações portuárias. O órgão ressalta que é cada vez mais importante ter transparência em relação às tarifas/preços portuários e participação ativa do governo e de agências reguladoras para boas práticas do setor, fato que infelizmente não ainda ocorre no Brasil, pois as assimetrias são enormes. Cada vez mais os usuários de transporte marítimo queixam-se das crescentes práticas abusivas que vêm ocorrendo no mercado por parte das operadoras.

No início da pandemia, as transportadoras marítimas argumentaram que, como esforço para manter os preços de frete durante o período de menor demanda, restringiriam a sua capacidade de operação, porém, mesmo com a retomada do mercado no terceiro trimestre de 2020, como citado acima, as medidas feitas por armadores continuaram.

No final de abril de 2021, apesar de um aumento de 3% na oferta de capacidade (Clarksons Research, 2021a), o frete spot SCFI na rota Xangai-Europa aumentou para US$ 4.630/TEU, e no final de julho atingiu US$ 7.395/TEU. O aumento no frete spot também se estendeu às regiões em desenvolvimento, incluindo América do Sul e África. Na rota da China para a América do Sul (Santos) o frete era US$ 959/TEU em julho de 2020, mas no final de Julho de 2021 atingiu US$ 9.720/TEU, alcançando um aumento de 913%.

Nesse cenário, para facilitar a compreensão do problema, segue uma série de perguntas e respostas:

1. O que significa esse relatório e qual a sua importância para o comércio exterior?

Para mim ele é importante, mas essa relevância varia segundo o nível de educação de quem atua no setor. É preciso que esse embarcador tenha essa percepção: de valorização do transporte marítimo para a competitividade do seu negócio. Aqui no Brasil, o embarcador, obviamente com exceções, vê o shipping como um negócio do além, ele delega para um agente intermediário ou despachante, e acha que o problema está resolvido, até que a conta chega, e chega muito alta.

O Relatório de Transporte Marítimo da UNCTAD é um documento técnico que analisa as mudanças estruturais e cíclicas que afetam o comércio marítimo, portos e transporte marítimo de todos os tipos, com várias estatísticas. Ele é feito pela UNCTAD e no relatório de 2021 há um foco sobre o impacto da COVID-19 na logística marítima e portuária, inclusive no que tange aos aumentos abusivos de fretes, mas não trata das surcharges (cobranças extra-frete) que afetam sobremaneira o usuário e são mais de 25 no Brasil. Aqui temos de todos os tipos, até armador/agente cobrando, muitas delas sem qualquer fato gerador.

Se tratasse, o cenário seria muito pior no Brasil, pois a demurrage, por exemplo, ainda é permitida em valor muito superior ao do frete e da carga. Já tive casos de demurrage de três contêineres dry de 62 vezes (R$ 1,6 milhão) maior do que o frete (R$ 26 mil) e 27 vezes o valor da carga (R$ 60 mil), que embora tenhamos assumido o caso já com recurso de apelação, conseguimos reduzir para um acordo de R$ 500 mil, após denúncia.

A ANTAQ, devemos elogiar, vem trabalhando para criar critérios para identificar a abusividade, contudo, ainda não há norma para regular o tema. Mesmo nesse ambiente com normativos, muitos armadores e agentes intermediários insistem em descumpri-los. Essa questão da demurrage é tão grave quanto o frete no transporte marítimo.

Por tal motivo, decidi organizar um livro com especialistas do Brasil e do exterior em 2018, com reimpressão em 2021: Teoria e Prática da Demurrage de Contêiner, Aduaneiras, 392 p. O tema da regulação setorial marítima e portuária comparada também foi objeto do meu Pós-Doutoramento em 2007-2008, no Center Mossavah-Rahmani for Business and Government da Harvard University.

Ressalto que 80% do comércio exterior no mundo é feito por navios e, no caso brasileiro, 95%, aliado ao fato que não temos frota mercante adequada para reduzir a total dependência de navios estrangeiros, especialmente no transporte marítimo de contêiner.

Não temos sequer um navio de bandeira brasileira no longo curso. Atuando no setor há quatro décadas, posso dizer que esse relatório é leitura obrigatória para os usuários desse modal, assim como aos gestores de políticas públicas, dentre os quais servidores do Ministério da Infraestrutura, Secretaria Nacional de Transportes Aquaviários e Portos, ANTAQ, Cade, Ministério da Economia, Secretaria de Advocacia da Concorrência, Ministério Público e parlamentares do Congresso Nacional.

Apesar disso, a impressão que tenho é que ele não é lido, sequer conhecido, pois a preocupação com regulação setorial da logística não tem sido prioridade da maioria dos usuários e de suas associações, o que faz com que sequer tenhamos políticas públicas para combater esses problemas. O cenário que ele mostra é assustador, e a cada ano piora para os usuários e empresas de navegação brasileiras. Em 2022 parece que não será diferente. Muitos prejudicados “Não querem olhar para cima”, para contextualizar com o filme do Leonardo DiCaprio.

2. Em um trecho do relatório, é possível observarmos que os armadores, objetivando manter os fretes altos durante o período de baixa demanda, restringiram a capacidade da frota. O que significa isso para o mercado? É legal tal medida?

Em princípio, há evidências de externalidades negativas decorrentes de uma falha de mercado na regulação desse setor, pois evidencia uma conduta oportunista com o objetivo de aumentar as margens de lucro muito acima dos custos marginais, conforme se verifica na tabela adiante.

No caso brasileiro essa prática evidencia uma prática abusiva, que deve ser analisada em cada concreto. Ela é passível de sanções administrativas por parte do Cade (multas de 0,1% a 20% do valor do faturamento bruto da empresa ou grupo, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo e de 1% a 20% daquela aplicada à empresa ao administrador direta ou indiretamente responsável pela infração cometida), e da ANTAQ (multas de até R$ 1 milhão por infração, além de outras sanções).

Além disso, pode configurar crime contra a ordem econômica e ilícito civil, com possibilidade de ação indenizatória pelo prejudicado por dano causado por cartel. Essa medida é quase não usada no Brasil, embora nos EUA seja usada em 90% do enforcement da lei antitruste. Cada caso é um caso, e deve ser apurado, com direito de defesa das empresas e administradores eventualmente denunciados.

Segundo o Relatório, os custos de transporte podem ser contidos através da expansão da capacidade da frota para suprir a demanda, tornando os portos mais eficientes, melhorando o planejamento e a transparência, bem como implementando medidas de facilitação do comércio. O transporte marítimo deve ser transparente, justo e competitivo e as autoridades reguladoras nacionais devem monitorar todas as cobranças e todos os agentes econômicos do setor. Reguladores devem compartilhar informações para tornar o transporte mais eficiente, o serviço adequado.

Não é o que temos visto no Brasil, pois, ao contrário do modelo chinês, aqui não há sequer registro e acompanhamentos dos preços cobrados no setor, seja pela ANTAQ, seja pelo CADE, e nem cultura de price cap – não confundir com tabelamento de preços da SUNAB.

Isso faz com que, aliado à alta concentração (cartelização) no transporte marítimo de contêiner e assimetrias de informação (como na cobrança do THC “rachadinha”, onde há evidências de enriquecimento ilícito e sonegação fiscal), ocorra inúmeras práticas abusivas, decorrentes em parte por essa escolha regulatório de um modelo ex post e não ex ante de regulação.

Ou seja, o regulador só age mediante provocação do usuário. O resultado desse modelo está em parte no relatório da UNCTAD. Aqui no Brasil, contudo, é possível analisar a legalidade de cada cobrança e medidas para cancelar e pedir a devolução, devendo-se observar a prescrição de três ou cinco anos.

3. O relatório aponta que os impactos no setor foram menores do que o esperado e que a retomada começou a acontecer no terceiro trimestre de 2020, puxada principalmente pelo e-commerce nos Estados Unidos. Se a retomada já aconteceu, qual a justificativa para os preços do frete continuarem elevados?

Essa é uma pergunta de US$ 1 milhão que deveria ser respondida pelos responsáveis nos órgãos acima.

4. Qual o impacto desses aumentos para países da América do Sul, como o Brasil? No relatório, é possível observarmos que o frete para a rota China-Santos saltou de US$ 959 em julho de 2020 para US$ 9.720 em julho de 2021.

O impacto é o pior possível pois se dá pela apropriação indevida de todo o esforço de redução de custos dos embarcadores e que prova o derretimento da competitividade dos produtos brasileiros bem como aumento do custo de vida dos consumidores, pois esses preços são repassados e aparecem nas prateleiras dos supermercados, farmácias e comércio em geral.

As pesquisas comprovam isso, não só o relatório da UNCTAD, mas do Banco Mundial e do Fórum Econômico Mundial, dentre outras. Sem falar a pesquisa na beira do cais. É preciso melhorar.

Ressalto o esforço que a ANTAQ vem fazendo nesse sentido, mas critico há mais de década a insistência equivocada, quando as evidências empíricas apontam para outro modelo, no modelo ex post e pelo fato dos transportes estrangeiros de linhas regulares operarem sem outorga de autorização, gerando não só redução do poder dissuasório, mas também viola a isonomia entre empresas brasileiras de navegação e estrangeiras. Muitas dessas são grandes players e possuem mais de 20% do mercado relevante, e operam com evidências de abuso de posição dominante, o que merece estudo mais aprofundado do CADE, ANTAQ e Ministério da Economia, especialmente por determinação da Lei Geral das Agências.

Esse problema foi alertado em parecer que o ex-ministro do STF, Prof. Dr. Joaquim Barbosa, como advogado, deu para um cliente nosso em 2015, numa denúncia que fizemos à ANTAQ e ao TCU. Ele entendeu que essa opção regulatória é uma “inconstitucionalidade por omissão” por parte da agência.

5. Em determinado trecho, o relatório cita a necessidade de apelo para uma melhor regulação econômica dos preços cobrados no transporte marítimo, com o objetivo de combater abusos principalmente nos países menos desenvolvidos. No Brasil, qual é o panorama sobre as leis e diretrizes que regem esse sistema? Há avanços nesse sentido?

Temos instituições e normativos suficientes para combater e punir esses abusos, mas a omissão do principal responsável por esse cenário, o usuário, é grande, e não vejo organização e pressão para que os órgãos de estado, como a ANTAQ, repensem o modelo ex post.

6. Quais as previsões do valor de frete para 2022 e 2023?

Outra pergunta para a ANTAQ, Minfra e Ministério da Economia. Pelo que vejo, esse novo “normal” será mantido. E caso continue a omissão dos prejudicados e dos órgãos responsáveis por acabar ou reduzir tais abusos, o cenário não somente do frete, mas das surcharges, será de aumento.

Além disso, o judiciário, especialmente o de primeiro grau, não tem cooperado muito, pois vemos muitas decisões que não são deferentes ao esforço normativo da ANTAQ para combater tal problema. Cito dois casos:

a) ELF (Export Logistics fee), que é uma despesa portuária (isso mesmo!) cobrada não por um operador portuário, mas por um armador de contêiner, e não comprovada, e

b) exigência de pagamento integral da demurrage para que o armador aceite a devolução do contêiner vazio.

Nesses dois casos, a ANTAQ editou normativos que proibiam tais cobranças e prática, mas o judiciário deferiu a liminar que suspendeu os efeitos dos mesmos. Uma decisão dessa, seria impossível no modelo de controle judicial dos atos da Federal Maritime Commission (ANTAQ dos EUA), vez que há grande deferência por parte do judiciário. Com exceções, falta maior capacitação dos nossos magistrados, especialmente os que lidam com Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro. São trabalhadores e muito qualificados, em função do rigoroso processo seletivo, mas falta conhecimento técnico-jurídico especializado no setor.

7. Podemos esperar mais discussões acerca desse assunto no âmbito jurídico em 2022 e 2023? Como podemos avançar nessas questões?

Atuando no setor há quarenta e um anos, sendo trinta deles como advogado e professor, sou cético, mas não pessimista. É possível melhorar, contudo, as mudanças são muito pequenas diante da necessidade de atacar problemas macro, transnacionais. É como se um paciente terminal com câncer buscasse um médico (o Estado) e fosse tratado com aspirina.

Os vários diagnósticos exigem tratamento adequado e o Estado brasileiro, juntamente com os prejudicados, usuários e prestadores de serviços, precisam aplicar o remédio adequado, com cuidado para não errar a dose e matar o paciente. Infelizmente, não vejo mudança no tratamento do paciente, mas há remédios para atacar esse problema.

8. Segundo o relatório de atualização do mercado de frete marítimo publicado pela Alphaliner/DHL em setembro de 2021, diversas operadoras aumentaram seu lucro durante a pandemia, alcançando números extremamente altos, por exemplo 2915% de lucro líquido, como é o caso de um armador que opera no Brasil. Como podemos explicar esse fator?

Outra pergunta que deveria ser respondida pelos órgãos acima. Não vou entrar no caso do armador acima, mas eventuais condutas abusivas decorrem por falta de efetividade da regulação adequada, que deve ser não somente feita pelos órgãos de estados dos países, mas em cooperação supranacional.

Não há como atacar o problema do narcotráfico internacional somente com um muro entre os EUA e o México. O problema é complexo, transnacional, e não há solução simples e de curto prazo. Se alguém disser que tem essa solução e que o judiciário somente vai resolver o problema, desconfie, não acredite. Não há solução simples e de curto prazo para um problema complexo.

9. O que é possível fazer para combater ou reduzir tais abusos, inclusive diante dos valores pagos em cobranças ilegais?

Há medidas de médio e longo prazo, a serem tomadas junto à ANTAQ, especialmente por meio de associações, para aperfeiçoar o modelo, que vem melhorando, em face da curva de aprendizado, inclusive com normativos que podem combater os abusos. No curto prazo, cada cobrança tem particularidades e variam de prestador de serviço. A primeira orientação é exigir uma proposta de serviços por escrito com a identificação dos motivos de cada rubrica, assim como o valor.

A segunda dica é procurar uma assessoria jurídica especializada para orientação e análise de eventuais medidas extrajudiciais e judiciais de cancelamento, assim como devolução do valor pago indevidamente nos últimos anos. O mesmo procedimento pode ser feito em relação às cobranças por serviços portuários, especialmente na redução de valores altos de armazenagem, ainda cobrados no modelo ad valorem, com valor que pode ser superior ao da carga (valor CIF), scanner – Inspeção não Invasiva (INI), Serviço de Segregação e Entrega (SSE), dentre outros.