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Demurrage, price cap e regulação ex post: “gargalo regulatório”?

Os professores Daron Acemoglu (Economia, MIT) e James Robinson (Kennedy School of Government, da Harvard University), no livro Why the Nations Fail – Elsevier, 2012, 511 p. (Porque as Nações Fracassam), sustentam que as instituições exercem um papel vital no progresso e na riqueza das países ao longo dos séculos, especialmente quando são inclusivas (facilitando as atividades econômicas e inserindo empresas domésticas na economia, como as pequenas e médias), e não extrativistas.

Inclusivas foram as instituições do Reino Unido, a Austrália e os Estados Unidos, e não inclusivas as de vários países africanos e latino-americanos, dentre os quais o Brasil e as ex-colônias espanholas, sempre a serviço do status quo, da metrópole, dos carteis e grupos transnacionais, em detrimento dos agentes econômicos domésticos.

Nesse cenário, onde o ambiente institucional é vital para o progresso, o usuário brasileiro de transportes aquaviários e portos, detentor de direito constitucional ao serviço adequado, apesar de ter normativos editados pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), vem sofrendo com a sonegação do seu direito, no que tange às cobranças imódicas de demurrage e detention de contêiner.

Esse serviço no longo curso é 100% prestado por armadores transnacionais, e torna a economia brasileira vulnerável pois inexiste política de Estado para reduzir o problema. Sobre o tema: CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Marinha Mercante brasileira: longo curso, cabotagem e bandeira de (in)conveniência. Prefácio Comte. Álvaro Almeida Jr. São Paulo: Aduaneiras, 2014.

Não há dúvida sobre o aumento da complexidade dos problemas a serem regulados, e que a Antaq vem demonstrando animus mutandi (ânimo para mudar) para efetivar o “interesse público” e equilibrar os interesses entre os usuários e os prestadores de serviços, como se verifica na edição de vários normativos, especialmente a partir de 2014. Mas isso não basta. Há falhas de mercado e de governo que podem evidenciar inclusividade ou o extrativismo.

O problema da inexistência de price cap

O usuário vem enfrentando muitos problemas nas suas operações logísticas quando se depara com sobre-estadia de contêiner, diante da falta de critérios, ainda, por parte da Antaq para evitar abusos nas cobranças de preços e tarifas sem limites, que violam a modicidade, ironicamente, uma das condições do serviço adequado.

Tratarei aqui somente da abusividade da demurrage/detention, lembrando que abordei esse instituto do Direito Marítimo, em livro que organizei com capítulos de vários especialistas, alguns do exterior: Teoria e Prática da Demurrage de contêiner. Prefácio Prof. Dr. Norman Augusto Martinez Gutierrez, Coordenador do International Maritime Law Institute, IMO, Malta. São Paulo: Aduaneiras, 2019.

Não abordarei outros problemas relevantes, dentre os quais, os preços dos serviços portuários ad valorem, uma das práticas do extrativismo do Brasil-Colônia (20% ad valorem do valor que passava pela alfândega era enviado para

Portugal), ainda sem critérios para identificar abusividades, como armazenagem, serviço de segregação e entrega (SSE) e inspeção não invasiva, nem sobre a inexistência de normativo para regular os serviços de alguns maus prestadores da zona secundária.

Essa norma poderia ser editada pelas três agências reguladoras nacionais de transportes e portos (Antaq, Anac e Antt), para exigir serviço adequado na zona secundária, como terminais Redex, CLIAS, que não sofrem regulação econômica da Receita Federal.

 Algumas condutas, além de prejudicarem o ambiente de negócios do usuário, violam a isonomia concorrencial entre operadores da zona primária (molhados) e da zona secundária, estes em parte regulados por uma legislação ultrapassada vigente há 120 anos. Mas isso é tema para outro artigo.

No caso do remédio regulatório para atacar os abusos nos preços por parte de alguns armadores e agentes intermediários na demurrage, não confundir com tabelamento de preços da extinta Sunab, sugere-se o preço teto (price cap), criado na década de 1980, no Reino Unido, ferramenta que vem se difundindo para vários países, inclusive da OCDE.

“Gargalo regulatório?”

Nesse contexto, por quais motivos a Antaq se recusa a arbitrar a modicidade na sobre-estadia quando provocada e diante de valor muito maior do que o do frete e o da carga?

Sabemos que o tema faz parte da Agenda Regulatória, que visa editar metodologia para identificar abusividade na sobre-estadia, mas o usuário não suporta mais aguardar a norma, especialmente os pequenos e médios que respondem por 30% do PIB brasileiro e pouco participam do comércio exterior. O risco de demurrage sem limites é uma barreira de entrada.

Esse tema será tratado em: MÜLLER ZANIZ, Lucas; CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de. Importância do Compliance na cadeia logística doméstica e internacional para micro, pequenas e médias empresas. In: RAMOS, Robson (org.). Compliance para micro, pequenas e médias empresas. Belo Horizonte: Editora D’Plácido: Belo Horizonte, 2023, p. 161-169.

O usuário precisa de regulação que efetive o serviço adequado na cadeia logística, diante da vulnerabilidade em que se encontra quando se depara com cobranças de valor sem limite, pois vem enfrentando graves dificuldades nas execuções judiciais decorrentes dessas cobranças.

Vale lembrar que a regulação da sobre-estadia por parte da Antaq, ainda que sem resolver o problema da modicidade, embora prevista na norma, só veio a existir depois de denúncia da USUPORT RJ, atual Logística Brasil, contra a Antaq junto ao Tribunal de Contas da União. O mesmo se deu no tema THC “rachadinha”, que se encontra em estudos na agência. Esse fenômeno controvertido – “tculização”, tem sido observado, diante da omissão ou ineficiência de algumas agências.

A Antaq, antes do processo no TCU, ao ser provocada, em reunião de Diretoria, decidiu de forma unânime que não tinha competência para regular a demurrage, sob o equivocado argumento que a modicidade da Lei da Antaq não se aplicava à sobre-estadia, pois essa não era frete e nem tarifa (Processo: 50300.012622/2018-10 e Processo Condutor: 50300.006313/2018-01, julgado em 02.08.2018). Como ter serviço adequado sem regular a demurrage? É preciso uma interpretação sistemática inclusiva.

Essa falta de critério e a negativa recorrente da Antaq da solução do problema quando provocada no modelo ex post, uma grave externalidade negativa no exercício da função de regulação econômica via arbitramento da demurrage/detention, têm causado perplexidade ao usuário que vem acreditando na efetividade dos seus direitos na agência.

Isso vem ocorrendo devido ao indeferimento de medida cautelar para suspender temporariamente a cobrança e arbitrar um valor módico, o que implica na redução da cobrança. O usuário apresenta os argumentos e as provas para tal decisão, mas o indeferimento até o julgamento do mérito tem provocado um verdadeiro pesadelo para a carga: “pior a emenda que o soneto”. Trata-se de um “gargalo”, dessa vez criado pelo modelo do próprio regulador.

Significa que o armador ou agente intermediário, diante da decisão do órgão regulador, até o julgamento do mérito, que pode demorar vários meses e até mais de um ano, ainda passível de judicialização, está autorizado e, pior, “legitimado” por um órgão do Estado brasileiro, a bloquear as operações posteriores e recusar o embarque do usuário que teve o direito sonegado.

Essa forma de decidir pode ser fatal para os usuários de transporte marítimo, não somente os pequenos e médios, vez que a denúncia da Logística Brasil ao TCU levou diversos casos de cobrança de demurrage, inclusive com valor de 80 vezes o valor do frete e 30 vezes o da carga. Essas práticas continuam, apesar do esforço da agência para enfrentar o problema com a edição da RN 18/2017, com a agravante que os credores encontram legitimidade na cobrança, quando o usuário busca a agência, especialmente com o indeferimento da cautelar.

Não obstante, não há dúvida de que a Antaq, em que pese o processo de desmonte de várias agências, com restrição orçamentária, nomeação de alguns diretores sem qualquer vivência no mercado regulado (shipping não se aprende somente nos livros e exige law in action), com violação dos requisitos da Lei Geral das Agências Reguladoras (por exemplo, mínimo de dez anos de experiência como profissional liberal no campo de atividade da agência ou em área conexa – Lei nº 13.848/2019) com evidências de captura pelo poder político (Congresso e Executiv0), vem se esforçando para entregar serviço adequado aos usuários, de um lado, e garantir o retorno ao investidor privado, de outro lado.

É louvável o trabalho do corpo técnico da Antaq, especialmente das suas Gerências e das Superintendências de Regulação e de Fiscalização, na edição de normativos e decisões que suspendem cobranças abusivas, inclusive com premiação pela regulação responsiva (FGV-Rio), mas é preciso uma atenção especial, especialmente por parte dos diretores, nos casos em que o usuário requer redução de valor e não há critério para evitar a abusividade.

O modelo ex post questionado

Não se trata de tarefa simples, mas é urgente um olhar diferenciado sobre o modelo de regulação ex post adotado pela Agência, qual seja de intervenção mínima, pois vem prejudicando o usuário de boa-fé, ou seja, aquele que pretende pagar, mas não o valor imposto pelo modelo escolhido pela Antaq, fundado na liberdade de preços.

Ora, se o modelo é ex post, ou seja, a Antaq não atua preventivamente, ex ante, quando provocada pelo usuário prejudicado, a agência tem o dever de atuar no caso concreto para proibir a cobrança abusiva, por meio da suspensão da cobrança. Isso exige o arbitramento do valor módico, ainda que posterior ao deferimento da medida, após a manifestação do transporte ou do seu agente, especialmente quando uma quantidade muito pequena de usuários conhece o papel e busca a Antaq, num universo de pouco mais de 10 milhões de TEUS movimentados por ano nos portos brasileiros (Antaq, 2022).

Afinal, a própria Lei de Liberdade Econômica assim determina: “Art. 3º.  São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (…) III – definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda;”

A Antaq precisa rever o modelo de regulação ex post no mercado de contêiner, caso insista em “legitimar” cobranças abusivas com o indeferimento de cautelar com pedido de arbitramento de valor, sob pena de péssima sinalização ao usuário, já que não há qualquer perigo de dano reverso no deferimento cautelar.

Ou a Antaq revisa o modelo para que seja ex ante, com o registro prévio e monitoramento dos preços de frete e demurrage, bookings, termos de responsabilidade e conhecimentos de embarque marítimo (Bill of Lading) como faz a China, ou suspende a cobrança quando o valor é abusivo e arbitra um valor, se decidir pela manutenção do modelo ex post. Não dá para conceder tudo ao armador/agente intermediário, e expor ao risco o usuário, ainda que o denunciado possa sofrer fiscalização.

Esse modelo implica na imputação excessiva de ônus da prova ao usuário pelo regulador, diante da apresentação de provas e argumentos que deveriam inibir a conduta do prestador de serviço que impõe preços abusivos unilateralmente, sem qualquer registro ou acompanhamento da Antaq, como autorizado pelo modelo ex post.

Cabe mencionar que regular é um instituto que veio da física e foi apropriado primeiro pela economia e, depois, pela ciência jurídica. A regulação é definida usualmente como ato do governo (ou Estado) prescrever diretamente o que os agentes privados de um setor podem e não podem fazer, a fim de que a sua conduta não viole o “interesse público”.

Da impossibilidade de serviço adequado sem modicidade

Deve-se destacar que é impossível ter serviço adequado no transporte marítimo de contêiner sem que haja o arbitramento de um preço teto para a cobrança de sobre-estadia, quando o valor é abusivo, vez que a modicidade é uma das condições.

No caso específico de demurrage/detention de contêiner em valor imódico, ainda um dos maiores problemas do usuário brasileiro, decorridos mais de vinte e um anos de criação da Agência, até hoje quando provocada para suspender o valor absurdo, em alguns casos de duas vezes o valor da carga, e cinco vezes o valor do frete pago ao armador, a agência, para surpresa das entidades de usuários, tem indeferido a medida cautelar, por não vislumbrar a fumaça de bom direito e o perigo na demora!

Não viola a previsibilidade e a modicidade uma demurrage sem termo de responsabilidade assinado pelo usuário, em valor duas vezes superior ao da carga e cinco vezes o valor do frete? Diante desse incêndio, como não há fumaça do bom direito? Se a Antaq entende que tal valor é módico, precisa rever o modelo ex post.

E o que falar do perigo da demora? O não pagamento do valor absurdo expõe o usuário ao risco de recusa ou bloqueio das suas operações pelo armador ou agente intermediário. Não vou tratar aqui dos altos valores de serviços portuários, especialmente armazenagem portuária, ainda sem price cap, problema que se agrava quando o atraso no embarque ou no desembarque decorre de greve de servidores públicos. Quem paga a conta? Não há dúvida que o terminal tem direito à armazenagem, mas não pode direcionar a cobrança ao usuário.

Em conclusão e voltando à temática da sobre-estadia de contêiner, já passou o momento da Antaq repensar o modelo ex post ou a forma como vem tratando as demandas que requerem o arbitramento do preço. É preciso sinalizar um rumo à inclusão, aproveitando-se da sua curva de aprendizado.

Devo lembrar que resolveu a Antaq determinar que as empresas prestadoras de serviços autorizados de navegação marítima e agentes intermediários, assim como instalações portuárias, dentre as quais, os terminais de uso privado (TUP), devem garantir o serviço adequado ao usuário, mediante um conjunto de condições mínimas.

Dentre elas podem ser citadas a eficiência, a previsibilidade, a modicidade nos preços e tarifas, a pontualidade, a regularidade.

Para exercer a sua regulação, a Antaq tem optado pelo modelo de regulação ex post, qual seja, regime de liberdade de preços, com intervenção mínima, o que exige do usuário uma fiscalização permanente das atividades dos prestadores de serviços, sem que ela seja Agência.

Ademais, se a Antaq até hoje não optou pelo modelo de regulação ex-ante, identificando os problemas, exigindo o registro e monitorando os preços de demurrage/detention, pelo menos deveria dar efetividade ao serviço adequado, in casu, a condição da modicidade, suspendendo a cobrança do valor, até a manifestação do credor, e com posterior arbitramento do valor, sob pena de criar mais um grave problema para o usuário.

Afinal, a expressão ex ante, um termo usual do vocabulário da economia, corresponde à tradicional expressão a priori, que é do direito, e se refere ao conhecimento de uma situação antes que ela ocorra. Por outro lado, ex post, outra expressão comum da economia, corresponde no direito à a posteriori, e se trata de uma reação de um organismo a uma situação ou comportamento que ocorreu.

Nesse cenário, verifica-se uma falha de governo na opção da agência, pois permite que o prestador de serviço opere em mercado com regulação mínima, no modelo ex post, de um lado, mas, ao mesmo tempo se recusa a suspender cobrança abusiva, quando provocada pelo usuário.

Portanto, é urgente que a Antaq repense o modelo ex post, que vem causando injustiça ao usuário, que não consegue adimplir essas cobranças abusivas, sob pena de configurar um “gargalo regulatório” como vem sendo observado nos casos de pedido de arbitramento.

Não é razoável que a economia política da regulação desse problema inverta o ônus da prova a favor de um grande grupo econômico transportador, em mercado altamente concentrado, em detrimento da sonegação do serviço adequado de usuário, em alguns casos, com pouca movimentação de carga, e comprometa todos os ativos da empresa.

Em conclusão, deve-se elogiar o trabalho que a Antaq vem fazendo por meio de seu qualificado é de excelência, o que não a isenta do alerta sobre o problema acima apontado – Carthago delenda est – a fim de que não se configure mais um “gargalo” dentre os vários que o usuário já enfrenta nas suas operações logísticas, e que fogem à competência da Antaq. Um gargalo extrativista?

O papel da agência deve ser empoderado, para maior inclusão dos agentes econômicos que operam no setor por ela regulado, na esteira da lição dos autores que iniciam essas breves notas, evitando a tculização e a judicialização, que só aumentam os custos de transação dos envolvidos.

Osvaldo Agripino é advogado sócio do Agripino & Ferreira Advogados, Pós-Doutor em Regulação de Transportes e Portos, KSG – Harvard University, e Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica (PPCJ) da UNIVALI. 

Artigo publicado e escrito originalmente para Portos e Navios.